Foi publicada em edição extra do Diário Oficial do dia 1º de abril a Lei nº 14.133/2021 que estabelece o novo regime jurídico das licitações e contratações da Administração Pública.
Além de unificar diversas regras constantes em diplomas legais e infralegais que tutelavam os procedimentos licitatórios e os contratos administrativos (só na esfera federal, até 2018 os servidores que trabalhavam com licitações e contratos tinham de conhecer 283 normas), o novo estatuto abrange também aspectos relacionados ao controle interno e externo das aquisições de bens e serviços por parte do Estado, o que o torna um verdadeiro Código Nacional de Contratações Públicas.
O cenário no qual se insere a Lei nº 14.133/2021 é o de diversas críticas ao regime instituído pela Lei nº 8.666/1993, que, só para se ter uma ideia, trazia originalmente 12 hipóteses de dispensa de licitação e hoje contempla mais de 30, num nítido reflexo de uma tentativa de fuga aos procedimentos trazidos por aquela norma.
Aliás, tentativas de contornar os problemas decorrentes da aplicação da Lei nº 8.666/1993 não faltaram, haja vista que, desde a sua promulgação, ela restou alterada 225 vezes (sendo a última alteração promovida pela Lei nº 14.130, de 29/3/2021), isso sem mencionar as normas contidas nas Leis nº 10.520/2002 (pregão) e nº 12.462/2011 (regime diferenciado de contratações), que também procuraram corrigir falhas contidas no regime da Lei nº 8.666/1993.
Com a pandemia da Covid-19 esses problemas da Lei nº 8.666/1993 foram agravados e ela revelou-se completamente ineficaz para atender às demandas da Administração Pública, razão pela qual foi criado um verdadeiro regime jurídico excepcional de emergência sanitária por meio das Leis nº 13.979/2020 e nº 14.124/2021 para afastar sua aplicação.
Muito embora traga várias novidades, a nova Lei de Licitações não foi disruptiva, de modo que ela não descartou por completo o modelo trazido pela Lei nº 8.666/1993; tratou-se, a bem da verdade de uma tentativa de aperfeiçoá-lo, unificando (como já dito) diversas normas legais e infralegais sobre licitações e contratos, positivando entendimentos do Tribunal de Contas da União e acolhendo lições da doutrina.
Mas, em linhas gerais, de forma prática, o que muda para a Administração Pública, para os órgãos de controle, para os licitantes, para os contratados e para a sociedade civil a partir da edição da Lei nº 14.133/2021?
Veja, nessas primeiras leituras da nova Lei de Licitações, as reflexões que daí surgem por óbvio são influenciadas por uma visão panorâmica e por um juízo de prognose, razão pela qual só a reiteração de debates e de reflexões permitirá avaliar melhor os influxos que o texto legal provocará.
Esclarecida tal premissa, eis a seguir um cenário não exauriente dos possíveis impactos das novidades trazidas pela nova Lei de Licitações na Administração Pública, nos órgãos de controle, nos licitantes, nos contratados e na sociedade civil.
1) Exemplos de impactos da Lei nº 14.133/2021 na Administração Pública: a) possibilidade de celebração de contrato de eficiência (artigo 6º, LIII); b) implantação do e-government com a imposição de que os atos da licitação sejam preferencialmente digitais e a necessidade de criação de catálogo eletrônico de padronização de compras, serviços e obras (artigos 12, VI e 19, II); c) fomento ao planejamento com a possibilidade de elaboração de plano de contratações anual, com o objetivo de racionalizar as contratações, garantir o alinhamento com o planejamento estratégico e subsidiar a elaboração das leis orçamentárias (artigo 12, VII); d) necessidade de atender a diversas etapas preparatórias antes de publicar o edital do certame, com destaque para a realização de estudo técnico preliminar que descreva a necessidade da contratação e caracterize o interesse público envolvido e para a análise dos riscos que possam comprometer o sucesso da licitação e a boa execução contratual (artigo 18, I e X); e) possibilidade de, no fornecimento de bens, a Administração promover a indicação de marcas em determinadas hipóteses (artigo 41, I); f) introdução, na esfera geral das licitações e contratações públicas, de dois procedimentos auxiliares previstos no RDC: pré-qualificação e registro cadastral (artigo 78, II e V) e criação de dois novos procedimentos auxiliares dentro deste regime geral: credenciamento e procedimento de manifestação de interesse (artigo 78, I e III) e g) dever de emitir decisão sobre todas as solicitações e reclamações relacionadas à execução dos contratos (artigo 123).
2) Exemplos de impactos da Lei nº 14.133/2021 nos órgãos de controle: a) atribuição expressa de competência ao órgão de assessoramento jurídico da Administração para realizar o controle prévio de legalidade de contratações diretas, acordos, termos de cooperação, convênios, ajustes, adesões a atas de registro de preços, outros instrumentos congêneres e de seus termos aditivos (artigo 53, § 4º); b) submissão das contratações públicas a três linhas de defesa integradas por servidores e empregados públicos, agentes de licitação, autoridades que atuam na estrutura de governança unidades de assessoramento jurídico, unidades de controle interno, pelo órgão central de controle interno da Administração e pelo tribunal de contas (artigo 169, I, II e III); c) obrigatoriedade de adotar medidas de saneamento em caso de constatação de impropriedade formal, adotarão medidas para o seu saneamento (artigo 169, § 3º, I); d) imposição legal de levar em consideração as razões apresentadas pelos jurisdicionados e os resultados obtidos com a contratação (artigo 170); e e) garantia de dialética e de imparcialidade na fiscalização (artigo 171, I e II).
3) Exemplos de impactos da Lei nº 14.133/2021 nos licitantes: a) rito idêntico para o pregão e para a concorrência, com, por exemplo, uma única fase recursal (artigos 17, VI e 29); b) possibilidade de o orçamento estimado da contratação ter caráter sigiloso (artigo 24); c) fim das modalidades convite e tomada de preços e criação da modalidade diálogo competitivo (artigo 28, V); d) introdução nas contratações em geral de dois critérios de julgamento de propostas que só eram utilizados no RDC: maior desconto e maior retorno econômico (artigo 33, II e VI); e) possibilidade de a Administração exigir que o produto esteja de acordo com as normas da ABNT, Inmetro e quejandos e que possua certificação de qualidade emitida por instituição credenciada pelo Conmetro (artigo 42, I e § 1º); f) inserção de forma isolada ou conjunta dos modos de disputa aberto (lances públicos) ou fechado (propostas em sigilo até a divulgação) (artigo 56, I e II); e g) possibilidade de saneamento de irregularidades (vícios sanáveis) na licitação (artigos 59, I e 71, I).
4) Exemplos de impactos da Lei nº 14.133/2021 nos contratados: a) cláusula de matriz de alocação de riscos que define a responsabilidade de cada parte no contrato (artigo 22); b) obrigatoriedade de implantar, em caso de inexistência, programa de integridade até seis meses após a assinatura de contrato de grande vulto (artigo 25, § 4º); c) possibilidade de exigência de seguro-garantia com cláusula de retomada em obras e serviços de engenharia de grande vulto, onde a seguradora, em caso de inadimplemento pelo contratado, assume a execução de concluir o objeto do contrato (artigos 99 e 102); d) possibilidade de contratos de serviços e fornecimentos contínuos serem prorrogados por até 10 anos (artigo 107); e) estabelecimento de uma ordem cronológica para os pagamentos devidos pela Administração Pública (artigo 141); f) obrigatoriedade do pagamento de parcela incontroversa em caso de litígios sobre a execução contratual (artigo 142); possibilidade de pagamento antecipado (artigo 145, § 1º); e g) possibilidade de utilização de meios alternativos para prevenção e resolução de controvérsias, como a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem (artigo 151).
5) Exemplos de impactos da Lei nº 14.133/2021 na sociedade civil: a) aumento da transparência com a previsão da criação de um sistema informatizado (com recursos de áudio e vídeo) para o acompanhamento de obras públicas (artigo 19, III); b) fomento da participação popular na Administração Pública com a previsão da possibilidade de convocação de audiências e consultas antes da realização de licitações (artigo 21, parágrafo único); c) possibilidade de não só impugnar edital de licitação, mas como também de solicitar esclarecimentos sobre procedimentos licitatórios (artigo 164); d) subordinação das contratações públicas ao controle social (artigo 169); e e) incremento do accountability, em razão de o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP): e.1) trazer informações sobre planos de contratação anuais, catálogos eletrônicos de padronização, editais de credenciamento e de pré-qualificação, avisos de contratação direta e editais de licitação e respectivos anexos, atas de registro de preços, contratos, termos aditivos e notas fiscais eletrônicas (artigo 174, § 2º); e e.2) oferecer painel para consulta de preços, banco de preços em saúde e acesso à base nacional de notas fiscais eletrônicas, acesso ao Cadastro Nacional de Empresas Inidôneas e Suspensas (Ceis), acesso ao Cadastro Nacional de Empresas Punidas (Cnep) e o sistema de gestão compartilhada com a sociedade de informações referentes à execução do contrato (artigo 174, § 3º).
Veja, ainda há, naturalmente, muitas incertezas sobre a nova Lei de Licitações e Contratos, sendo certo que seus dispositivos serão objeto de inúmeros debates e a sua aplicação dará margens a algumas interpretações que prevalecerão sobre outras.
Em razão disso, serão importantíssimas as diversas experimentações que ocorrerão no período de transição de dois anos previsto na nova Lei de Licitações (artigo 191) no qual o atual/antigo regime de licitações previsto nas Leis nº 8.666/1993, nº 10.520/2002 e nº 12.462/2011 conviverá, a depender da escolha da administração, com o novo/futuro regime de licitações previsto na Lei nº 14.133/2021.
Diante de tal cenário de efervescência, será preciso não só um exercício de humildade por parte dos aplicadores do Direito para respeitar a curva de aprendizado da 14.133/2021, como também um espírito de cooperação para construir uma interpretação que mire nos problemas da Lei nº 8.666/1993 e impeça que eles se repitam neste novo regime de licitações e contratos.
Autor do texto: Aldem Johnston Barbosa Araújo
Fonte: https://www.conjur.com.br/2021-abr-08/aldem-johnston-muda-lei-licitacoes